sábado, 19 de setembro de 2009

"Linha de passe"


Um ralo. Um ralo que escoa, num lava-loiças impecavelmente branco. Ou uma água acastanhada a boiar num lava-loiças de cimento.

Se me pedissem para dizer o que mais me impressionou neste filme de Walter Salles (que também realizou o excelente "Central do Brasil" e o razoável "Diários de Che Guevara") e Daniela Thomas, foram estes dois ralos.

Outros diriam que a linha, a fronteira invisível que separa ricos e pobres, é uma metáfora muito mais eficaz - e teriam razão. Aliás, a linha de passe do futebol é a única (ou uma das poucas) que permite aos pobres franquear essa barreira quase intransponível. (desculpem esta divisão do mundo entre ricos e pobres, mas no filme a classe média é inexistente. Talvez não haja classe média no Brasil: ou se tem dinheiro para viver num condomínio fechado ou não).

Muitos aludiriam, e com toda a razão, às imagens de jogos de futebol. São belíssimas, mostram os jogadores e as claques, os momentos em que tudo pára, suspenso no tempo. Um estádio inteiro em uníssono.



Alguns, com razão, falariam da tensão dos jogadores que esperam no banco para serem chamados, que aguardam em filas para serem seleccionados por um olheiro, que vêem no futebol o jogo, a paixão - e a única saída.

Vários (e têm razão) referir-se-iam ao fervor das comunidades religiosas de bairro, dos crentes que entram em transe, das confissões públicas, dos oficiantes que talvez acreditem no que estão a fazer e a dizer - ou não. Fé, a única saída para os que já desistiram dos seus sonhos de futebol.

Poucos, mas com razão, mencionariam a festa. Só um bolo, mas uma dança que vem de dentro. Corpos que se libertam, na dança, no amor, no futebol. É simultaneamente muito física e muito espiritual a forma como os corpos em movimento são filmados. Como a protagonista (que obteve a palma de ouro de interpretação feminina do Festival de Cannes com este trabalho) beija a medalha que traz ao pescoço.

O meu amigo Nuno tinha-me falado da cidade de S. Paulo. Ele é arquitecto, viveu no Brasil - tem razão.

Embora tenha ficado impressionada com as imagens em que vemos pela última vez os protagonistas (nunca saberemos se o parto correu bem, se algum dos irmãos vai ser preso, se o craque de futebol vai ser contratado, se o filho mais novo vai conhecer o pai, se a patroa vai despedir a mãe, se o crente perdeu a fé) e com o mantra/oração/encorajamento "Anda, anda, anda", foi no ralo que "li" que eles iam conseguir. No ralo finalmente desentupido da pia de cimento.

Eu não vejo futebol, não vou a sessões da Igreja Evangélica e, com muita pena minha, não danço maravilhosamente. Mas o incitamento (que não pôs - como era de temer - a paralítica a andar) ficou muito tempo a ecoar na minha cabeça.

"Anda, anda, anda, anda, anda, anda, anda, anda, anda, anda, anda, anda, anda, anda, anda"

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