sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

E, se amanhã vou a Lisboa, é porque...



... me pergunto "(...) ó harpa de ouro dos fatídicos vates/por que pendes, muda, dos salgueiros?"
 
E, se estou a preparar uma merenda (garrafa de água da torneira, três sanduíches, uma maçã e uma banana) é porque, embora taxada como rica, o dinheiro me escasseia cada vez mais.

 
E, se estou angustiada por ir, é porque o trabalho me espera, e me obrigará (no Domingo e nas madrugadas dos dias da semana) a longas noitadas. Mas terei ido, terei juntado a minha voz ao coro.

E, quando me tornar, de forma menos velada, uma escrava, poderei dizer: eu estive lá, eu vi o que ia acontecer, eu tentei. E não fiquei muda.

"Dar corda ao relógio: como e porque dormimos?"

No âmbito da iniciativa conjunta entre o Plano nacional de leitura e o centro de Electroencefalografia Clínica, "DORMIR + para LER MELHOR" - que cá na escola adoptou a designação mais prosaica "Ler & chonar" -, tivemos ontem o privilégio de ouvir a Doutora Elisa Lopes, que nos apresentou a palestra "Dar corda ao relógio: como e porque dormimos?"
 
 

A apresentação, que decorreu no auditório da ESVV, foi irrepreensível tanto do ponto de vista científico, como do ponto de vista comunicacional. Com efeito, a palestrante, médica psiquiatra com uma pós-graduação em distúrbios do sono, fez uma apresentação geral do tema claríssima, que culminou na apresentação dos dados de uma investigação que levou a cabo entre os estudantes da Universidade do Minho (corroborados aliás por outras investigações). Achei muito curiosa, e louvável, a apresentação, no próprio dispositivo de apresentação, de cabeçalhos de artigos de outros investigadores dedicados ao mesmo tema.

Já solicitei (e prometi que as inserirei aqui mesmo, logo que as obtenha) as dez regras de ouro para um sono de qualidade, tanto mais importantes quanto elas afectam o crescimento, o rendimento escolar e o humor de crianças, jovens e adultos.


Embora se trate de um tema transversal (e a prova foi a quantidade de professores que, fora do seu horário e não acompanhando turmas, assistiu à palestra) que a todos interessa, este projecto - liderado pelas professoras Ana Paula Faria de Matos e Beatriz Santos - visa essencialmente alunos e encarregados de educação.

E a verdade é que foram muitas as questões que suscitaram a curiosidade dos participantes, tendo Elisa Lopes respondido a perguntas interessadas - e interessantes -, versando temas tão diversos como o bruxismo (isso mesmo, o bruxismo), o sonambulismo ou a síndroma das pernas inquietas. Quanto à insónia, cujas causas e efeitos foram dilucidados, sopesou-se se é preferível tomar ansiolíticos em caso de persistência - e durante quanto tempo.

Por último, importa realçar que Elisa Lopes "dominou" uma plateia heterogénea, atenta tanto aos exemplos que mais directamente lhe diziam respeito, como aos dados científicos que os sustentam. Que solicitou - e obteve, o que é bem mais difícil - a atenção do público e respondeu com clareza e correcção às inúmeras perguntas.

O "ler & chonar" teve um início bem auspicioso.

"Doida Não e Não!"

Ainda a comunidade de leitores da ESVV

A comunidade de leitores dedicada a O alienista de Machado de Assis teve esta virtualidade (inerente à cultura) de suscitar mais e mais questões. Bem assim para a figura de Maria Adelaide Coelho da Cunha, que foi objecto de um livro de Manuela Gonzaga, Doida, não e não!





No blogue http://leiturasdasmarias.blogspot.pt/, encontrei um texto assaz elucidativo acerca desta obra - e da personagem real que a motivou:

 
«Sinopse: Filha e herdeira do fundador do 'Diário de Notícias'. Mulher do administrador do mesmo jornal, o escritor Alfredo da Cunha. Presa num manicómio por um «crime de amor». Os factos relevantes têm início em Novembro de 1918: era uma vez uma senhora muito rica que fugiu de casa, trocando o marido, escritor e poeta, por um amante. Tinha quarenta e oito anos, pertencia à melhor sociedade portuguesa. O homem por quem esta senhora se apaixonou tinha praticamente metade da sua idade e fora seu motorista particular. Era herdeira do 'Diário de Notícias' e a sua história chocou a sociedade da época.

(...) Quando no dia 13 de Novembro de 1918, Maria Adelaide Coelho da Cunha saiu de casa para não mais voltar nunca pensou no desfecho que a sua fuga iria tomar. Santa Comba Dão acolheu o amor desta dama da sociedade pelo seu antigo motorista, Manuel Claro, mas poucos dias depois do seu desaparecimento o seu marido, Alfredo da Cunha, decide colocar um anúncio no jornal de que era administrador “Diário de Notícias”.

Maria Adelaide tinha abandonado um casamento de 28 anos com Alfredo da Cunha, e um filho, José Eduardo Coelho da Cunha de 26 anos, licenciado em Direito. «Tinha 48 anos e era uma figura incontornável na vida social lisboeta e o casal era apontado como exemplo de harmonia conjugal».

«Enquanto casada, Maria Adelaide tinha uma vida social intensa. Além de conviver bastante, viajava muito também com o marido por vários países da Europa ver peças ou teatro e locais históricos».

No entanto, segundo alguns testemunhos de amigos, familiares e criados, a partir de 1917, Maria Adelaide sofreu uma grande mudança de atitudes.

Após 11 dias de ter fugido para Santa Comba Dão é descoberta pelo marido e pelo filho e acaba por ser levada para o Conde de Ferreira, no Porto, onde foi diagnosticada como louca. Naquela instituição Maria Adelaide passou a ficar constantemente vigiada e mesmo uma carta teria de passar pela «pela censura da Direcção, acrescentara-lhe o “salvo conduto – umas palavras de louvor ao modelar Conde de Ferreira”, porque a única forma das cartas seguirem “é dizer bem do hospital”».

Entretanto, Maria Adelaide consegue passar estas palavras, de uma forma camuflada, a Manuel Claro, sobre as condições com que a puseram no hospital psiquiátrico.

«Imagina que não me fizeram nenhum exame médico para aqui me meterem; mas o dinheiro pode tudo e a prova está à vista. É preciso que desconfies de tudo e de todos em toda a parte e principalmente do Balbino Rego que teve tudo isto um papel de miserável, como depois de contarei…”»

Não era de admirar. O decreto de 11 de Maio de 1911 dizia que qualquer pessoa poderia requerer o internamento de outra no manicómio, desde que apresentasse o atestado de dois médicos e um exame de Júlio de Matos. E assim foi. Maria Adelaide foi internada no Conde de Ferreira e «arcou com um diagnóstico de loucura que lhe foi aposto com assinaturas de Júlio de Matos, Egas Moniz e Sobral Cid». Depois disso ainda viria a perder todos os seus bens.

«Em silêncio deixou-se conduzir ao pavilhão das criminosas. Era o dia 26 de Fevereiro de 1919. Durante uns brevíssimos e felicíssimos 23 dias fora a “rapariga de Manuel”.

Agora voltava a ser uma louca.»

Durante oito meses, Maria Adelaide permanece no manicómio e, só mais tarde, em praça pública, é que decide contar o seu «crime de amor». Manuel Claro também estivera preso, na Cadeia da Relação, no Porto, durante praticamente quatro anos.

Mas o amor superou tudo. Maria Adelaide viria a morrer na sua casa, no Porto, no dia 23 de Novembro de 1954, com 85 anos. Manuel Claro morreria em 1967, vítima de cancro. Viveram juntos mais de 30 anos, sem nunca terem casado.



Esta história surpreendente, que me deixou sem fôlego tal o enredo que a própria autora, Manuela Gonzaga, tão bem urdiu, surgiu através dos actuais donos do palácio de São Vicente, que em 2003 descobriram que de um fundo falso de uma pesada secretária, surgiu «um precioso acervo de minutas de cartas, bilhetes e notas enviadas a quem privou com o casal (Maria Adelaide e Alfredo da Cunha) – amigos, familiares e antigos serviçais do palácio - , a quem se pedia depoimentos sobre os tempos felizes de São Vicente. Também ali se encontravam relatórios e pareceres fundamentados nos exames psiquiátricos feitos a Maria Adelaide e assinados pelos mais ilustres professores da especialidade…E, ironia amarga, ali estava também o seu lacónico bilhete, escrito em Santa Comba Dão, e colocado nos correios de Aveiro, conhecido como «a carta do lacre verde»».

Um excelente relato da história que, além de contar todas as peripécias pelas quais passou o casal de apaixonados, ainda centra a vida de Maria Adelaide no contexto história em que ela viveu. Um livro que recomendo a todos os amantes da história de Portugal no início do século XX e de como as mulheres eram tratadas caso não ‘obedecessem’ às regras estipuladas.

Esta linda história de amor também já tinha servido de mote a Monique Rutler, que realizou o filme Solo de Violino, em 1992, cujos protagonistas foram André Gago, no papel de Manuel Claro e Fernanda Lapa no papel de Maria Adelaide. «O filme viajou pelo mundo inteiro, estando presente em numerosos festivais nomeadamente em Nova Iorque, Cannes, Berlim, Cairo e Florença», mas infelizmente não está disponível em circuito comercial, «e a RTP passou-o duas vezes apenas nestes anos todos. O mesmo se pode dizer da banda sonora, com assinatura de Constança Capdville».





Procura-se

A família proprietária de um Peugeot verde (matrícula 12-49-FC) que ontem, um pouco antes do Alívio, atirava papéis pela janela fora... era só para lhes dizer que é feio deitar lixo no chão.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

A comunidade de leitores foi ao Centro Hospitalar Psiquiátrico do Conde de Ferreira...

... e, mau grado termos regressado um pouco impressionadas, gostámos muito. O pretexto, como sabem, era a leitura do "Alienista" de Machado de Assis. Mas a visita revelou-se um achado a vários níveis: arquitectónico, histórico, literário, científico, humano...
 

Cada uma de nós encontrou um (ou mais) ponto de interesse. Todas nos confrontámos com as nossas ideias pré-concebidas acerca da doença mental e dos seus tratamentos (quem não se lembra de "Voando sobre um ninho de cucos"?).

Admirámo-nos (talvez nos tenha vindo à mente a palavra "expiação") com o facto de o Conde de Ferreira ter ganho a sua fortuna com o tráfico de escravos. Relembrámos o poeta Ângelo de Lima (e ficámos a saber que foi a doença que lhe inspirou tantos neologismos, de entre os quais emerge a palavra "cintilar"). Espantámo-nos com o caso de Maria Adelaide Coelho da Cunha, internada por motivos totalmente alheios à loucura. Arrepiámo-nos com a lobotomia que Egas Moniz fez ao seu amigo Raul Proença. Lamentámos a riqueza das publicações adquiridas ao longo de centenas de anos, e com o facto de a sua aquisição estar agora, por razões orçamentais, suspensa. Vimos camisas de forças, observámos os planos de banheiras especiais e, sobretudo, tivemos pena do panóptico maior, arrasado para dar lugar à Via de cintura Interna. Arrepiámo-nos com o panóptico pequeno e com as suas implicações. As fotografias de alguns internados interpelaram-nos de uma forma inexplicável...
 
E fizemos um exercício de relatividade histórica: quantas das nossas prática actuais não serão, no futuro, consideradas bárbaras?

LE TEMPS RETROUVÉ - Raoul Ruiz (1998) Trailer / Bande annonce [HD]


Estragar "Anna Karenina"

 
 
Confesso que estava um bocadinho renitente, depois da impressiva releitura que fiz esta Primavera do livro de Tolstói, em ir ver o filme. Mas a Ana convidou, a Teresa ia, a Aida não faltou - e eu lá fui.
 
Nem sei por onde começar. Pareceu-me o subterfúgio cénico uma solução de facilidade, uma concessão comercialóide e uma alusão muito, muito vaga a um filme de muito superior qualidade, "Le temps retrouvé" de Raoul Ruiz - um filme que também não fazia, quanto a mim, jus à obra de Marcel Proust, mas cujo decorativismo e estetismo se encontravam a anos-luz desta outra adaptação de uma obra-prima literária. E depois, as personagens não têm qualquer espécie de espessura. Até Keira Knightley, que "ia tão bem" na adaptação do livro de Ian McEwan, "Expiação", se torna aqui um mero manequim.

As únicas cenas que me parecem  minimamente razoáveis são aquelas onde entra o actor que encarna Levine (já Kitty parece uma "mulherzinha").
 
Mas, se eu só perdi duas horas da minha vida, este filme pode afastar leitores: se forem ver o filme e considerarem o  livro "lido", perderão uma obra única. Se o virem e não gostarem, não lerão o livro. Em contrapartida,  se alguém a quem este filme agradou ocorrer pegar no livro, é bem possível que ele o/a decepcione.

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

A Comunidade de Leitores vai de passeio

 


Amanhã a comunidade de leitores da Escola Secundária de Vila Verde, que leu em suporte digital «O Alienista», do escritor brasileiro Machado de Assis, vai visitar a parte museológica do  Centro hospitalar do Conde de Ferreira.

Mutações da doença mental

Comprei há tempos este número especial da Sciences Humaines que posso - se me pedirem com jeitinho - emprestar. Deixo-vos a eloquente introdução:
 
 
«Selon les époques, on dit que les troubles mentaux sont l’œuvre de Dieu, du diable ou des esprits, ou encore de l’inconscient, du cerveau, des gènes ou de la société. On les prend en charge par la parole, l’enfermement, ou les neuroleptiques. Certains amusent plutôt, comme l’alcoolisme ou Alzheimer jusqu’à une date récente. D’autres suscitent l’extrême méfiance comme la schizophrénie. D’autres encore intriguent l’opinion publique et la communauté scientifique mais s’avèrent des feux de paille, telles l’hystérie ou les personnalités multiples. L’anorexie est acceptée chez les mystiques, le traumatisme est nié chez les soldats, quelques perversions sont passées dans les mœurs. On se déchire pour expliquer et soigner l’autisme, on s’inquiète de savoir si la tristesse ou la timidité ne seront pas bientôt des maladies. Les troubles mentaux ne sont décidément pas des faits médicaux comme les autres : ils intéressent la philosophie, la sociologie, et l’idée même que l’on se fait de l’être humain.»
 
Se clicarem em http://www.scienceshumaines.com/l-histoire-des-troubles-mentaux_fr_29274.html, poderão ler alguns dos dossiês em linha.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

O que é um alienista?

Trata-se da designação por que primeiro foram conhecidos os psiquiatras.

"O alienista" de Machado de Assis

Perguntar-se-ão a que propósito transcrevi textos acerca do conceito de panóptico. Embora seja algo que, por si mesmo, me interessa, neste caso tenho uma intenção mais prática: é que foi este o livro que a Ana Paula Matos sugeriu para a  Comunidade de leitores deste mês.

Com esta escolha, para além de podermos ler ou reler uma obra não muito longa (mas muito interessante do ponto de vista literário), temos a oportunidade de "iniciar" o nosso público leitor num suporte de leitura diferente: o digital. Assim, bastará clicar em http://virtualbooks.terra.com.br/freebook/port/download/O%20Alienista.pdf para aceder à obra de um grande, grande escritor de língua portuguesa e nacionalidade brasileira.

O conceito de panóptico, segundo Olga Pombo (e Michel Foucault)

Transcrevo um texto de Olga Pombo In http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/hfe/momentos/sociedade%20disciplinar/Pan%C3%B3ptico.htm


«Ao estudar a "Sociedade Disciplinar", Foucault constata que a sua singularidade reside na existência do Desvio diante a Norma. E assim, para "normalizar" o sujeito moderno, foram desenvolvidos mecanismos e dispositivos de vigilância, capazes de interiorizar a culpa e causar no indivíduo remorsos pelos seus actos.
Dentre os dispositivos de vigilância do início do século, podemos destacar o Panóptico, de Jeremy Bentham, um mecanismo arquitectural, utilizado para o domínio da distribuição de corpos em diversificadas superfícies (prisões, manicómios, escolas, fábricas).
Como cada cela dava ao mesmo tempo para o interior e para o exterior, o olhar do vigilante podia atravessar toda a cela; não havia nenhum ponto de sombra e, por conseguinte, tudo o que o indivíduo fazia estava exposto ao olhar de um vigilante que observava através de persianas, de postigos semi-cerrados de modo a poder ver tudo sem que ninguém ao contrário pudesse vê-lo.
O panoptismo corresponde à observação total, é a tomada integral por parte do poder disciplinador da vida de um indivíduo. Ele é vigiado durante todo o tempo, sem que veja o seu observador, nem que saiba em que momento está a ser vigiado. Aí está a finalidade do Panóptico,

...induzir no detido um estado consciente e permanente de visibilidade que assegura o funcionamento autoritário do poder. Fazer com que a vigilância seja permanente nos seus efeitos ... que a perfeição do poder tenta tornar inútil a actualidade do seu exercício...

Foucault,(1997),pag:166

Dissociando-se o par ver/ser visto, automatiza-se e desinvidualiza-se o poder.

O Panóptico organiza espaços que permitem ver, sem ser vistos, portanto, uma garantia de ordem. Assim, a vigilância torna-se permanente nos seus efeitos, mesmo que não fosse na sua acção. Mais importante do que vigiar o prisioneiro o tempo inteiro, era que o mesmo se soubesse vigiado. Logo, não era finalidade do Panóptico fazer com que as pessoas fossem punidas, mas que nem tivessem a oportunidade para cometer o mal, pois sentiriam-se mergulhadas, imersas num campo de visibilidade.

Em suma, o Panóptico desfaz a necessidade de combater a violência física com outra violência física, combatendo-a antes, com mecanismos de ordem psicológica.

A essência do Panóptico reside na centralidade da situação de inspecção, ou na construção, sem duvida ficcional, de uma espécie de "inspector central", omnipotente, omnipresente e, principalmente, omnividente.

O Panóptico (...) tem seu principio não tanto numa pessoa como numa certa distribuição concertada dos corpos, das superfícies, das luzes, dos olhares; numa aparelhagem cujos mecanismos internos, produzem a relação na qual se encontram presos os indivíduos (...) Pouco importa, consequentemente, quem exerce o poder. Um indivíduo qualquer, quase tomado ao acaso, pode fazer funcionar a máquina: na falta do director, sua família, os que o cercam, seus amigos, suas visitas, até seus criados (...) Quanto mais numerosos esses observadores anónimos e passageiros, tanto mais aumentam para o prisioneiro o risco de ser surpreendido e a consciência inquieta de ser observado.

Foucault, (1997), pag:167

Quem está submetido a um campo de visibilidade, e sabe disso, retoma por sua conta as limitações do poder; fá-las funcionar espontaneamente sobre si mesmos; inscreve em si a relação de poder na qual ele desempenha simultaneamente os dois papeis: torna-se o princípio da sua própria sujeição.

Foucault, (1997), pag:168

O Panóptico (...) deve ser compreendido como um modelo generalizável de funcionamento; uma maneira de definir as relações de poder com a vida quotidiana dos homens. Bentham sem duvida o apresenta como uma instituição particular, bem fechada em si mesma. muitas vezes se fez dele uma utopia do encarceramento perfeito.

Foucault, (1997), pág:169

Para Bentham, qualquer punição deve ser encarada antes de tudo como espectáculo; importa menos o seu efeito sobre quem é castigado, do que as impressões que recebem todos aqueles que vêem o castigo ou que dele são informados.

Na sua prisão panóptica, ocasionalmente se escutavam gritos horríveis - só que não de prisioneiros, mas de pessoas contratadas exclusivamente para semelhante propósito. A punição aparente, fictícia, produziria um bem para todos - a ordem, a disciplina - ao mesmo tempo que não produzia nenhum mal, exactamente porque o "mal" produzido teria sido forjado.

Todo o Panóptico, na verdade, é estruturado como uma ficção. É precisamente a aparente omnipresença do inspector que sustenta a perfeita disciplina no Panóptico, controlando os movimentos de transgressão entre os internos. Entretanto, como a omnipresença não pode ser um atributo humano, resta forjá-la, simulá-la, quer por rondas aleatórias, quer pela arquitectura do lugar, que permite a cada um dentro das celas ser facilmente visto, ao mesmo tempo em que dificilmente vê quem o vê.

Em última análise, o inspector perfeito, o inspector omnipresente, é aquele que nunca aparece - mas que pode aparecer a qualquer instante. O inspector perfeito é, enfim, uma voz, um olho, um ofício carimbado, uma sombra indistinta no fundo do corredor.

Neste tipo de instituições, nós somos vistos, ou pensamos que somos vistos, sem vermos aquele que vê, nós escutamos uma voz, sem vermos o dono da voz. O Panóptico deve ser governado por um olhar e por uma voz desconectados do seu portador. O inspector torna-se, então, uma espécie de fantasma. Em última instância, é uma entidade de ficção - ele não existe. Justamente por isto, ele pode provocar um medo superior ao de um guarda real, por mais cruel que esse guarda fosse.

A utopia panóptica - em si mesma uma obra de ficção - gerou outras tantas obras de ficção. Muitos livros tematizaram o Panóptico, em geral para repudiá-lo, ou exorcizá-lo. Dentre eles, o romance mais conhecido é 1984, de George Orwell, em que a figura omnipresente e omnividente (entretanto inexistente) do inspector geral toma a forma do Big Brother, enfim, de um grande olho que pode ver todos os recantos. Orwell escreveu-o em 1948, invertendo os dois últimos algarismos para situar a sua utopia negativa.

O esquema Panóptico pode ser utilizado sempre que se deseja impor uma tarefa ou um comportamento a uma multiplicidade de indivíduos.

O Panóptico (...) permite aperfeiçoar o exercício do poder. E isto de várias, maneiras: porque pode reduzir o número dos que o exercem, ao mesmo tempo que multiplica o número daqueles sobre os quais é exercido (...) Sua força é nunca intervir, é se exercer espontaneamente e sem ruído (...) Vigiar todas as dependências onde se quer manter o domínio e o controle. Mesmo quando não há realmente quem, assista do outro lado, o controle é exercido. O importante é (...) que as pessoas se encontrem presas numa situação e poder de que elas mesmas são as portadoras (...) o essencial é que elas se saibam vigiadas.

Foucault, (1997), pág: 170»

 

O panóptico do centro hospitalar do conde de Ferreira

 
 
O conceito (literal e metafórico) de panóptico é crucial nos tempos em que vivemos. Deixo-vos o texto, escrito em português do Brasil, da Wikipédia http://pt.wikipedia.org/wiki/Pan%C3%B3ptico 
 
« No final do Séc. XVIII o filósofo e jurista inglês Jeremy Bentham concebeu pela primeira vez a ideia do panóptico. Para isto Bentham estudou “racionalmente”, em suas próprias palavras, o sistema penitenciário. Criou então um projeto de prisão circular, onde um observador poderia ver todos os locais onde houvesse presos. Eis o Panóptico.
Ele também observou que este mesmo projeto de prisão poderia ser utilizado em escolas e no trabalho, como meio de tornar mais eficiente o funcionamento daqueles locais.
Foi naquele período da história que, segundo o francês Michel Foucault, iniciou-se um processo de disseminação sistemática de dispositivos disciplinares, a exemplo do panóptico. Um conjunto de dispositivos que permitiria uma vigilância e um controle social cada vez mais eficientes, porém, não necessariamente com os mesmos objetivos “racionais” desejados por Bentham e muitos de seus antecessores e contemporâneos.
Dos anos 60, do Séc. XX, quando Foucault escreveu suas primeiras obras, até o início do Séc. XXI, novas tecnologias de comunicação e informação surgiram, permitindo novas formas de vigilância que por vezes se tornam tão dissimuladas que não são facilmente percebidas pelos indivíduos. Tornam-se também naturalizadas, não deixando claros todos os objetivos de quem se utiliza daquelas novas técnicas de vigilância.
Nestes novos tempos a vigilância também vem adquirir uma nova característica. A possibilidade de observação de todos sobre todos. Hoje é possível ao patrão ler mensagens de correio eletrônico de seu empregado, mas também existe a possibilidade de colegas lerem mensagens de colegas, maridos de esposas, pais de filhos, a partir de ferramentas gratuitas disponíveis na Internet, por exemplo.
Empresas conseguem, a partir de celulares, monitorar o local onde se encontram seus empregados. Governos e crackers podem, com o instrumental adequado, ter as informações bancárias de qualquer cidadão, a partir de banco de dados individuais (como aqueles referentes a antiga CPMF, por exemplo) e câmeras digitais vigiam cada metro quadrado de aeroportos.
O panóptico se disseminou. E como afirmou enfaticamente em meados dos anos 90 outro filósofo francês, Gilles Deleuze, isso gerou a criação de uma Sociedade de Controle.»

Buscar-se no vento, encontrar-se no mar

Eu me perdi na sordidez dum mundo
Onde era preciso ser
Polícia agiota fariseu
Ou cocote

Eu me perdi na sordidez do mundo
Eu me salvei na limpidez da terra

Eu me busquei no vento e me encontrei no mar
E nunca
Um navio da costa se afastou
Sem me levar
 
Sophia de Mello Breyner Andresen

David Bowie - Where Are We Now?


sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

«Amor» de Michael Haneke


«Holy Motors» de Leos Carax


Filmes só para adultos

Aproveitei a interrupção lectiva para ver dois filmes que tão cedo não esquecerei: «Amor», de Michael Haneke, e «Holy motors», de Leos Carax. 
 
O primeiro é um filme que pode - e talvez deva - ser visionado por alunos do ensino secundário, os quais - nós também já passamos por aí - consideram qualquer ser humano com mais de trinta anos uma relíquia arqueológica e têm dificuldade em encarar o seu futuro em idades mais avançadas.

 
A verdade é que as famílias (em Vila Verde talvez não tanto) se reduzem cada vez mais ao núcleo duro (pai, mãe - ou apenas um deles - e filhos - ou apenas filho) e, por isso, as crianças e jovens convivem pouco com velhos. Ao passar na via rápida, vejo sempre um cartaz que mostra duas pessoas de idade numa pose que habitualmente associamos a jovens. Jamais esquecerei o ar de nojo que a Cristina, minha aluna do décimo ano, pôs quando falámos dessa publicidade. E não houve nada que a convencesse que é lícito, e desejável, que os menos novos tenham uma vida amorosa activa. Não faz mal. Quando lá chegar, a Cristina VAI perceber (e isto não é uma ameaça. É um desejo).

Mas seria extremamente redutor encarar «Amor» apenas desta perspectiva pedagógica (utilitária e sociológica, até porque a questão da eutanásia é fulcral). «Amor» é um filme lindíssimo, muito bem filmado, mostrando tudo com tal pudor que jamais sentimos senão um respeito reverencial por aquelas pessoas. Podemos lamentá-las, mas não temos pena delas. Admiramo-las tanto pelo que foram como pelo que são.

Mesmo quem conhece  de perto aquela realidade, como eu, encontra agora novas dimensões e novas formas de pensar a velhice, a doença e os cuidados que elas implicam.
 
Já o filme de Leos Carax será mais difícil de apresentar a um público jovem. Tão difícil, que eu e o E. discordámos em vários pontos, lemos e relemos as críticas do Público e do Expresso e, não contentes com isso, fomos à Internet ver as críticas dos jornais franceses... tanto bastaria para o classificar como um óptimo filme.


Enquanto a obra de Michael Haneke decorre num espaço fechado com um número restrito de personagens, «Holy Motors» é "muitos filmes" dentro do filme, abrangendo várias micro-narrativas, um desfile de personagens e vários espaços. Assim, a minha veia "professoril" aconselharia a isolar um ou dois destes episódios e a estudá-los do ponto de vista da crítica a uma sociedade capitalizada pelo trabalho e pela falta de tempo, pela primazia das imagens e pelo vazio vivencial. Redutor? Muito, muitíssimo. Vejam mas é o filme todo, que os professores não percebem nada disto...