sábado, 22 de dezembro de 2012

O casaco azul


A mulher que gostava do Natal pensava longamente nos presentes que ia comprar. Comprava postais, escrevia num rascunho um pequeno texto que ia modificando à medida das pessoas a quem o dirigia. Colava-lhes selos e ia pôr a pilha de sobrescritos num marco de correio. Nem sempre lhe respondiam. Aliás: geralmente telefonavam-lhe. Desistiu no ano em que alguém lhe enviou uma sms que começava assim: “Ho ho ho...”.
      Pensou: “Para o ano vou fazer uma lista das pessoas a quem não vou mandar postais de Natal.” Chegou então à conclusão de que só tinha de comprar um postal de Natal. Ia mandar um lindo postal à Luísa, ao Zé João, à Mariana, à Luisinha e ao Afonso. E ia escrever à Elisa.

A mulher que gostava do Natal passou a tarde do dia 24 na cama, ouvindo as pessoas que iam para as compras e que vinham das compras passar na rua. Tentava ganhar coragem para se arranjar. Quando, finalmente, se levantou, não vestiu, como sempre, a camisola vermelha.

domingo, 16 de dezembro de 2012

Sonhar com a escola II

Esta noite, como em muitas outras noites, sonhei com a escola. Tinha uma turma como quase todas as turmas: alunos atentos, alunos desatentos. Tentava, já não me lembro como, captar a atenção de todos. Porém, à medida que o tempo passava, mais e mais alunos me entravam pela porta dentro: «Sra. Dra., mais um aluno para a turma.» (a funcionária encolhia os ombros). «Sra. Dra., desculpe...», mais um. E mais outro, e outro, e outro. Estávamos no fim do período (a sala estava na penumbra), e as sombras iam entrando, até - como já acontece nas verdadeiras salas da minha bem iluminada escola - eu olhar e ver um mar de pessoas, sentadas já nos lados, sentadas já de lado. Como vou avaliá-los, e já estamos no fim do período, perguntava-me eu. A certa altura, entravam pessoas da Direcção, e da Associação de pais, e eu continuava a  tentar, a tentar.

Quando chegou o intervalo, evitei os adultos que se amontoavam junto ao bar e comemoravam qualquer coisa, saí para o pátio (da casa da minha avó), subi a escada, bati ao batente e entrei nessa casa da minha infância, essa casa onde não havia trabalho nem preocupações, só férias e livros.

Uma profissão miserável



No último dia de aulas, vim para casa triste e desanimada. O *****, que é meu aluno há três anos, está sempre (sempre sempre sempre sempre sempre) distraído. Advirto-o. «Ó *****...», gasto-lhe o nome. Está sempre corado de jogar futebol nos intervalos, da excitação de dizer larachas, de me tentar fintar, de se meter com as meninas. Passa as mãos no cabelo vezes sem conta e veste-se com aprumo - embora o tempere com displicência q.b. Acho graça ao *****, mas sei, e digo-lhe, que tamanha brincadeira não pode dar resultado. Durante dois anos e quatro meses, o ***** ignorou-me (não direi olimpicamente, pois ele não é assim) sistematicamente.

Na sexta-feira, autoavaliação. O ***** arrepelou-se todo. Que eu sou muito injusta, que lhe devia "dar" uma positiva. Lembro-lhe que ele é que tirou negativas. Repito, como em penitência, o rol de tudo quanto lhe tenho dito. Em último recurso, digo-lhe que tem de assumir, agora, a brincadeira das aulas. O ***** está muito aborrecido, fala alto, faz má cara, levanta-se, faz «Oooooh», tenta convocar a benevolência dos colegas para a injustiça que eu estou a cometer (as notas são dele, é ele que está a preencher a ficha de autoavaliação). Zanga-se. Arrepela-se todo.
Também eu fico triste. Não gosto de ver alunos que se confrontam com o seu insucesso (sobretudo quando - e é a esmagadora maioria dos casos - esse insucesso resulta da sua ausência de atenção nas aulas, mais ainda do que da clássica falta de trabalho). Custa-me. Fico triste por não lhe poder «dar» a positiva, como quem dá um bonbom, como quem dá um presente.

Venho para casa triste e desanimada. Devia estar doida quando resolvi ser professora, eu que sonhei com tradução (literária, ainda por cima). Lutar apenas com a frase justa, a palavra justa. Aprender, em vez de tentar, miseravelmente, falhando sempre, ensinar.

Sonhar com a escola I

 
 
É muito frequente sonhar com a escola (com o trabalho).

Há vários dias que não-professores me dizem «Já estás quase de férias...» com ar de quem diz «Anima-te.» Não, não estou quase de férias. Ser professor é um trabalho pessoal e intransmissível. Quem não o é tende a mitificar tudo: férias, trabalho, ordenado.

Os mais sensíveis, os mais sinceros, admitem «Era incapaz de ser professor(a)»; «Eu só tenho três e já não posso mais, imagino o que seja lidar com tantos a mesmo tempo.»; «Podias vir connosco para * ****. És uma tesa!», assim como eu admito que podia ser tudo, menos médica, enfermeira ou auxiliar de acção médica.

Interrogo-me sempre por que motivo algumas pessoas parecem odiar professores. O Miguel Sousa Tavares, por exemplo (bem, ele de momento odeia estivadores. Eu não. É trabalho que eu também não gostaria de fazer). O que os faz odiar professores? Más experiências, por certo. Mas todas? Um professor, ou mais, que sugeriu correcções a textos que julgava perfeitos (lembro-me deste exemplo porque faz parte do meu dia-a-dia)? Uma nota inferior à de outro, inferior à que julgava ter direito? Todos temos prática neste género de coisas; só que uns aceitam isto como fazendo parte da lei da vida, e outros não.

sábado, 15 de dezembro de 2012

Melhor é impossível

Este texto, que li hoje no Público on-line, é da autoria de Joana Gorjão Henriques. Podia glosá-lo ou parafraseá-lo... mas não era a mesma coisa.
 
 
«O que fazer com a lasanha que hoje estava deliciosa mas amanhã não me apetece? Ponho-a no frigorífico ou vou oferecê-la à vizinha? Por que é que não peço mais vezes para me embrulharem os restos da dose que pedi no restaurante? E se fizesse em casa o dia dos excedentes e não deitasse fora o iogurte que passou do prazo há um dia?
No momento de decidir o que fazer com restos de comida, muitos acabam por deitar para o lixo aquilo que outros – e até nós próprios – poderíamos aproveitar.
A propósito da apresentação, esta quinta-feira, na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, do primeiro estudo sobre desperdício de comida feito em Portugal, Do Campo ao Garfo - Desperdício Alimentar em Portugal, pedimos aos líderes de duas organizações que reaproveitam comida dos restaurantes para revelarem conselhos de como, em casa, não acrescentar mais gramas ao milhão de toneladas de alimentos que todos os anos se desperdiça em Portugal – o que corresponde a 17% dos alimentos produzidos, e o maior desperdício acontece na fase final do consumo das famílias.
O americano Hunter Halder fundou em Março de 2011 o Re-Food, que vai buscar as sobras dos restaurantes e as distribui por quem precisa na freguesia de Nossa Senhora de Fátima, em Lisboa. No dia 26 de Dezembro a Re-Food organiza neste bairro o Natal feito à base de sobras. António Costa Pereira é o criador da associação DariAcordar, que lançou o movimento Zero Desperdício, com um conceito semelhante – desde Abril recuperaram mais de 70 mil refeições e 40 mil produtos de venda de máquinas automáticas para ajudar três mil pessoas em Loures, Cascais, Sintra e Lisboa.
Hunter Halder – Re-Food
“Digo o mesmo sobre o desperdício familiar que digo do desperdício comercial: não sabemos o poder que cada um de nós tem para mudar o mundo. Usar esse poder é uma decisão nossa, porque cada um tem a capacidade de evitar o desperdício de toneladas e toneladas de alimentos.”
1. Reeducar para valorizar a comida
"A comida é preciosa, mas não aprendemos a valorizá-la, o nosso comportamento não mostra isso. Os nossos avós e bisavós, que viveram a Grande Depressão dos anos 1930, diziam-nos que deitar comida fora era um pecado – viveram situações de privação em que a comida era preciosa."
2. Planeamento: preparar a quantidade de comida certa, não ter mais olhos que barriga
3. Triagem imediata dos restos, prever o futuro da lasanha
"Para mudar comportamentos, é preciso usar instrumentos que os facilitem. Por exemplo, não fazíamos a separação do lixo e hoje temos três caixotes: um para o papel, outro para o vidro, outro para o orgânico. Ou seja, temos instrumentos para apoiar o comportamento. No caso da comida tem de haver uma triagem imediata. Se sobra comida a uma refeição, normalmente ponho-a no frigorífico. Mas devemos tomar logo uma decisão: vou comê-la amanhã? Se pararmos dois minutos para pensar, se calhar pensamos que a lasanha que sobrou estava óptima, mas amanhã vai-nos apetecer comer frango. Então podemos dar o resto ao vizinho ou à família. Tenho uma vizinha que vive de comida 'reciclada'. Outra hipótese é entregá-la a uma organização local que faça a redistribuição de sobras."
4. Planeamento: pedir a dose de comida certa num restaurante, pedir meia dose em vez de uma, partilhar a dose com outra pessoa
5. Se sobra comida no restaurante, pedir para embalar o resto
"Se sobra comida dos clientes, não há nada que o restaurante possa fazer com isso. Então cabe à própria pessoa tomar a decisão do que vai fazer. Esse resto pode ser aproveitado para uma refeição mais tarde, ou ser entregue a uma entidade local que faz redistribuição ou oferecida a alguém – o que cada pessoa desperdiça num restaurante é talvez o mesmo que o nosso projecto recolhe por noite – 300 refeições diárias."

António Costa Pereira – DariAcordar
“Basicamente, estamos a falar de alterações de atitude na sociedade – recuperando alguns dos bons hábitos do tempo dos nossos pais e avós e respeitando o imenso valor dos alimentos que nos chegam à mesa, isto é, efectuando compras avulsas.”
6. Fazer uma ementa de refeições, para ser mais fácil organizar uma lista de compras (que idealmente deve ser diária ou semanal, evitando as grandes compras mensais).
7. Ter atenção aos prazos de validade na compra dos produtos, sabendo a diferença entre “consumir de preferência antes de" (menos restrito) e “data-limite de consumo” (quando não se deve mesmo ultrapassar o prazo).
8. Organização na despensa e/ou frigorífico, colocando à vista os produtos com prazos de consumo mais curtos.
9. Servir no prato menos quantidade (podendo servir mais vezes), a fim de evitar o desperdício do chamado “resto de prato”
10. Com tanta informação (muita dela na Internet) sobre receitas para aproveitamento das sobras para outros pratos (empadão, tortilhas, açorda, pão ralado, batido de frutas, etc), podemos reaproveitar esses excedentes criando em casa “o dia dos excedentes” – explicando aos filhos o que se pretende, eles aderem e tornam-se o garante futuro desses bons hábitos.»

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Dizer m**** num blogue escolar II


Aproveito o pretexto do Oscar Niemeyer para vos falar da Sara. Conheço-a desde muito pequenina. Cresceu bem, a Sara: é uma rapariga esperta, inteligente, coerente. Há tempos emigrou para a Suíça. Encontrámo-la no café no sábado passado e estivemos a conversar um bocadinho.
 
A Sara contou-nos uma história que já vi declinada de muitas formas: na Suíça, quem mais a explorou foi um português. É engraçado, não é? Mas essa é uma história sem "estória"...

Graça, graça, foi a descrição de um emigrante que tinha ido ao café onde a Sara esteve a trabalhar. Foi lá porque o dono é português. Só vai a lojas portuguesas. Sabe de cor o turno de uma rapariga portuguesa que trabalha numa bomba de gasolina. Só pode frequentar esses locais porque não sabe uma palavra de francês.

Até aqui tudo bem. O pior foi quando começou a dizer à Sara que tinha muito dinheiro, que era rico, que tinha uma casa no Algarve e outra na Madeira...
 
Era sábado de manhã. Nós estávamos absolutamente suspensos da boca da Sara, que se abriu para dizer o que a Sara pensou: "Uma boa merda, é o que tu tens." Uma boa merda.
 
 
 

Dizer m**** num blogue escolar I



Os franceses resolveram muito bem esta questão: socorrendo-se de uma história cuja veracidade está por atestar, inventaram o eufemismo "mot de Cambronne", isto é, a palavra que o general Pierre Cambronne terá dito ao seu homólogo britânico quando este o mandou render-se. Eu própria, que nunca digo palavrões, permito-me dizer "merda" quando quero desejar sorte a alguém que vai fazer uma apresentação oral.´"É gíria teatral", digo eu à laia de desculpa.
 
Apesar dos meus pruridos, ontem deliciei-me com a peça com que a TVI ilustrou, no telejornal, o carácter e a vitalidade de Oscar Niemeyer. O meu querido centro de recursos enviou-me hoje de manhã a transcrição. É assim:
 
«A minha arquitetura não é uma solução pra arquitetura, é a minha arquitetura. Assim como na pintura a gente tá de acordo de que não existe a pintura antiga e moderna, existe a boa e a má pintura. Na arquitetura é a mesma coisa. O ideal é cada um procurar o seu caminho e fazer o que gosta. Eu confesso a você que eu tô um pouco cansado de falar de arquitetura. Porque as coisas se repetem, a conversa é a mesma, as perguntas são as mesmas. Mais importante do que a arquitetura é estar pronto pra protestar e ir na rua, isso que é importante, é o sujeito se sentir bem, sentir que não é um merda, que ele tá ali pra ser útil...»

 
 
Quando for (mais) velha, quero ser assim: coerente e desbocada. Uma sábia.


Já agora: o endereço da Fundação Oscar Niemeyer.

Obituário: Oscar Neimeyer

Ninguém queria que eu fosse a Brasília, mas para mim estava fora de questão ir ao Brasil e não ir a Brasília. Afinal de contas, era um projecto utópico em que a arquitectura desempenhou um papel central.

 
 
 
Embora tenha visitado Brasília a pé - o que ninguém faz, a minha intuição confirmou-se: adorei a cidade monumental...
 
 
 
... mas também os bairros projectados pela parceria Lúcio Costa/Oscar Niemeyer para os habitantes. Belas "quadras" (quarteirões) arborizadas, com prédios inspirados por Le Corbusier, isto é, com a parte inferior suportada por "pilotis", permitindo uma leitura contínua das áreas ajardinadas.
O que me parece (leiga como sou) notável em Niemeyer é a depuração e simplicidade do traço, que depois é sustentada na atenção aos pormenores. Uma perfeição quase mística.
 

Há dois anos visitei um Centro Cultural de Avilés (Espanha), projectado por Niemeyer. De idade avançada, sem ter nunca visitado o local da obra, desenhou isto:


 


segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

"A primavera há-de chegar, Bandini"

Só vos falei do filme de há pouco porque o Jeremy Irons "em velho escritor" comenta o livro que o plagiador premiado lê no parque: um livro de John Fante. Um bom escritor, que já ninguém lê... perdão, eu (graças aos meus amigos de sempre) ando a lê-lo - e estou a adorar.
 
 

"As palavras", ou de como em terra de cegos que tem um olho é rei


Em circunstâncias normais, nunca me lembraria de vos falar deste filme. Acontece, porém, que, desde que os filmes de culto do Bragashopping só acontecem ao sábado, acabou-se, para mim, o cinema. Vejo filmes, mas não cinema...




 

"As palavras"



"As palavras" é um filme de Brian Klugman e Lee Sternthal que põe em cena um escritor que, apanhado num conjunto complexo de circunstâncias - o que aliás, em nada o desculpa -, acaba por cometer plágio com sucesso - no sentido em que não é "apanhado". Com uma estrutura complexa (eu diria que se trata de um filme dentro do filme dentro do filme), bem escrito, o filme perde-se na escolha e direcção de actores. Se o Jeremy Irons é fabuloso, o actor que o encarna em jovem é pouco mais do que uma nódoa de boa aparência. Um desperdício...