A comunidade de leitores dedicada a O alienista de Machado de Assis teve esta virtualidade (inerente à cultura) de suscitar mais e mais questões. Bem assim para a figura de Maria Adelaide Coelho da Cunha, que foi objecto de um livro de Manuela Gonzaga, Doida, não e não!
No blogue http://leiturasdasmarias.blogspot.pt/, encontrei um texto assaz elucidativo acerca desta obra - e da personagem real que a motivou:
«Sinopse: Filha e herdeira do fundador do 'Diário de Notícias'. Mulher do administrador do mesmo jornal, o escritor Alfredo da Cunha. Presa num manicómio por um «crime de amor». Os factos relevantes têm início em Novembro de 1918: era uma vez uma senhora muito rica que fugiu de casa, trocando o marido, escritor e poeta, por um amante. Tinha quarenta e oito anos, pertencia à melhor sociedade portuguesa. O homem por quem esta senhora se apaixonou tinha praticamente metade da sua idade e fora seu motorista particular. Era herdeira do 'Diário de Notícias' e a sua história chocou a sociedade da época.
(...) Quando no dia 13 de Novembro de 1918, Maria Adelaide Coelho da Cunha saiu de casa para não mais voltar nunca pensou no desfecho que a sua fuga iria tomar. Santa Comba Dão acolheu o amor desta dama da sociedade pelo seu antigo motorista, Manuel Claro, mas poucos dias depois do seu desaparecimento o seu marido, Alfredo da Cunha, decide colocar um anúncio no jornal de que era administrador “Diário de Notícias”.
Maria Adelaide tinha abandonado um casamento de 28 anos com Alfredo da Cunha, e um filho, José Eduardo Coelho da Cunha de 26 anos, licenciado em Direito. «Tinha 48 anos e era uma figura incontornável na vida social lisboeta e o casal era apontado como exemplo de harmonia conjugal».
«Enquanto casada, Maria Adelaide tinha uma vida social intensa. Além de conviver bastante, viajava muito também com o marido por vários países da Europa ver peças ou teatro e locais históricos».
No entanto, segundo alguns testemunhos de amigos, familiares e criados, a partir de 1917, Maria Adelaide sofreu uma grande mudança de atitudes.
Após 11 dias de ter fugido para Santa Comba Dão é descoberta pelo marido e pelo filho e acaba por ser levada para o Conde de Ferreira, no Porto, onde foi diagnosticada como louca. Naquela instituição Maria Adelaide passou a ficar constantemente vigiada e mesmo uma carta teria de passar pela «pela censura da Direcção, acrescentara-lhe o “salvo conduto – umas palavras de louvor ao modelar Conde de Ferreira”, porque a única forma das cartas seguirem “é dizer bem do hospital”».
Entretanto, Maria Adelaide consegue passar estas palavras, de uma forma camuflada, a Manuel Claro, sobre as condições com que a puseram no hospital psiquiátrico.
«Imagina que não me fizeram nenhum exame médico para aqui me meterem; mas o dinheiro pode tudo e a prova está à vista. É preciso que desconfies de tudo e de todos em toda a parte e principalmente do Balbino Rego que teve tudo isto um papel de miserável, como depois de contarei…”»
Não era de admirar. O decreto de 11 de Maio de 1911 dizia que qualquer pessoa poderia requerer o internamento de outra no manicómio, desde que apresentasse o atestado de dois médicos e um exame de Júlio de Matos. E assim foi. Maria Adelaide foi internada no Conde de Ferreira e «arcou com um diagnóstico de loucura que lhe foi aposto com assinaturas de Júlio de Matos, Egas Moniz e Sobral Cid». Depois disso ainda viria a perder todos os seus bens.
«Em silêncio deixou-se conduzir ao pavilhão das criminosas. Era o dia 26 de Fevereiro de 1919. Durante uns brevíssimos e felicíssimos 23 dias fora a “rapariga de Manuel”.
Agora voltava a ser uma louca.»
Durante oito meses, Maria Adelaide permanece no manicómio e, só mais tarde, em praça pública, é que decide contar o seu «crime de amor». Manuel Claro também estivera preso, na Cadeia da Relação, no Porto, durante praticamente quatro anos.
Mas o amor superou tudo. Maria Adelaide viria a morrer na sua casa, no Porto, no dia 23 de Novembro de 1954, com 85 anos. Manuel Claro morreria em 1967, vítima de cancro. Viveram juntos mais de 30 anos, sem nunca terem casado.
Esta história surpreendente, que me deixou sem fôlego tal o enredo que a própria autora, Manuela Gonzaga, tão bem urdiu, surgiu através dos actuais donos do palácio de São Vicente, que em 2003 descobriram que de um fundo falso de uma pesada secretária, surgiu «um precioso acervo de minutas de cartas, bilhetes e notas enviadas a quem privou com o casal (Maria Adelaide e Alfredo da Cunha) – amigos, familiares e antigos serviçais do palácio - , a quem se pedia depoimentos sobre os tempos felizes de São Vicente. Também ali se encontravam relatórios e pareceres fundamentados nos exames psiquiátricos feitos a Maria Adelaide e assinados pelos mais ilustres professores da especialidade…E, ironia amarga, ali estava também o seu lacónico bilhete, escrito em Santa Comba Dão, e colocado nos correios de Aveiro, conhecido como «a carta do lacre verde»».
Um excelente relato da história que, além de contar todas as peripécias pelas quais passou o casal de apaixonados, ainda centra a vida de Maria Adelaide no contexto história em que ela viveu. Um livro que recomendo a todos os amantes da história de Portugal no início do século XX e de como as mulheres eram tratadas caso não ‘obedecessem’ às regras estipuladas.
Esta linda história de amor também já tinha servido de mote a Monique Rutler, que realizou o filme Solo de Violino, em 1992, cujos protagonistas foram André Gago, no papel de Manuel Claro e Fernanda Lapa no papel de Maria Adelaide. «O filme viajou pelo mundo inteiro, estando presente em numerosos festivais nomeadamente em Nova Iorque, Cannes, Berlim, Cairo e Florença», mas infelizmente não está disponível em circuito comercial, «e a RTP passou-o duas vezes apenas nestes anos todos. O mesmo se pode dizer da banda sonora, com assinatura de Constança Capdville».
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