segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Conta-me como foi

Em A escola do Paraíso, de José Rodrigues Miguéis, encontramos um longo excerto onde os dias que antecederam a proclamação da República são narrados do ponto de vista de uma criança - o que nos permite observar as motivações assaz pessoais que levavam uns e outros a escolher um dos lados (como o senhor Sepulcra, monárquico porque "funcionário das alfândegas d'el-rei nosso senhor").

Quando, após dois dias e dois noites em que "(...) o ar de Lisboa andou esguedelhado de tiros, o céu riscado de fogos-de-vistas singulares (...)" e a bandeira republicana é içada no quartel do Carmo, os habitantes do prédio onde vive a família do protagonista dividem-se de acordo com as suas simpatias políticas. Reparem neste excerto delicioso: "O prédio embandeirou, mas só do lado esquerdo, numa espécie de hemiplegia republicana".

A alegria, mesclada de oportunismo, destes tempos de mudança, é assim caracterizada:

"Começavam-se a vender na rua bandeiras, alfinetes, postais e globos de vidro colorido com cenas e retratos dos homens do regime. Era uma Vida Nova que raiava. Dir-se-ia que estava tudo preparado para a celebração! Passavam bandos aos vivas, caminho da Baixa, da Rotunda, do tejo, cantando a Portuguesa. Afluíam de todos os lados os heróis de última hora: as barricadas, até ali quase vazias, transbordavam agora de combatentes, eriçadas de armas que não tinham chegado a dar fogo. Tiravam-se grupos memoráveis, para depois se dizer «Eu também Lá estive!»"


O pai do protagonista, porém, é genuinamente republicano, e o capítulo 28 conclui-se com os filhos intuindo as diferenças entre convicção e acomodação:
"Então compreenderam que alguma coisa de grande e sério se passava: não era só festa, só vivas, só fogo-de-vista! E ficaram muito tempo calados, no escuro da noite, pensando no pai que chorava de alegria, até que o cansaço daquele primeiro dia da Vida Nova os venceu, e adormeceram."

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