Um das coisas que faço nas aulas de francês é chamar a atenção para o que, para simplificar, designo como falsos amigos. O que eu não esperava era encontrar, num livro que recebeu o apoio para a cessão de direitos do Institut Français, erros tão grosseiros como os que encontrei em História dos quartos, de Michelle Perrot (Teodolito).
Deixo-vos uma listinha de enganos, recorrentes ao longo da obra. Se a lerem, encontrarão pêndulos (pendules), mas não relógios; cofres (coffres), mas não arcas ou baús; benévolas (bénévoles), mas não voluntárias; cartões (cartons), mas não caixotes; plumas (plumes), mas não penas, canetas ou esferográficas; domínios (domaines), mas não propriedades ou quintas; pavilhões (pavillons), mas não casas, vivendas, moradias; nichos (niches), mas não casotas de cão.
Dir-me-ão: mas em português há pêndulos, cofres, pessoas benévolas, cartões, plumas, domínios, pavilhões e nichos. E têm razão. Mas se lerem o livro, perguntar-se-ão, tal como eu, se será normal haver tantos pêndulos em cima de chaminés de casas modestas, se numa casa paupérrima poderá haver um cofre, se será normal que a "enfermeiras particulares profissionais" se oponham "benévolas", se os objectos se guardam em cartões (havendo também a ocorrência de "papel cartão", esse sim, cartão), que extraordinário valor atribuirão os presidiários a plumas, o que significará possuir um domínio (mas não na Internet), o que farão tantos pavilhões em zonas residenciais e se Gervaise (personagem de Zola) se refugiou, realmente, num nicho de cão - e o que é um nicho de cão.
De igual modo, a forma verbal vêm (p. 315 e p. 342) existe. Só que não tem nada a ver com... o verbo ver.
Mas, para lá destas asneiras recorrentes, existem pérolas que aparecem apenas uma vez, como atapetador (tapissier), mulheres sustentadas (soutenues), convenientes (convenables) ou libertas (libérées).
Poderíamos pensar que em francês as coisas andassem melhor, mas mesmo assim, pergunto-me se familistière não será antes um familistère (e se a explicação "cooperativa de consumo" será a adequada), se a pensão Vaquier não será antes Vauquer. Se Guilherme, o Marechal não será Guillaume Le Maréchal e se "o filho de Alexandre Dumas" não será Alexandre Dumas fils (aliás, poder-se-ia escrever um ensaio de estudos de tradução só à volta das opções onomásticas do tradutor). Já Françoise Chanderganor é designada como "o autor".
Admito que seja demais pedir a alguém que não tenha tido uma mãe como a minha que saiba o que é uma "liseuse" e que esta palavra se emprega(va) também em português. Mas talvez seja de esperar que se saiba que o quarto para amigos se chama "quarto de hóspedes" e que não se anda "por comboio", mas "de comboio", assim como dificilmente duas camas assentes em carris se aproximam. Já se estiverem assentes em rodas...
Também adorei a expressão "berma da cama" (p. 341). Até agora não percebi o que era uma "selha de cura do criminoso" ou "selha da penalidade" (p. 337 e 329: pensei em limiar, mas, como não tenho o livro em francês, fiquei na dúvida). Os meus conhecimentos de filosofia e religião não me permitem aferir se Teresa de Ávila se interessou mesmo pelas manadas (p. 325), os meus (des)conhecimentos de medicina fazem-me olhar com suspeita - mas não mais do que isso - para a expressão que destaco em itálico « [Alice James, d]epressiva, nevrálgica crónica (...)», mas os de arquitectura autorizam-me a afirmar que as loucuras da página 309 são "folies" (assim mesmo, em francês).
Uma loucura de tradução...
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