sábado, 21 de setembro de 2013

Dorcas Gustine

As pessoas da vila não gostavam de mim,
porque eu dizia sempre o que pensava
e também porque atingia abertamente, com protestos,
aqueles que me atacavam, sem ocultar a mágoa
ou alimentar o rancor.
Louva-se muito o acto desse rapaz espartano
que escondeu sob a sua túnica um lobo,
deixando, sem um único lamento, que este o devorasse.
Eu penso que há mais valentia em agarrar o lobo
e combatê-lo abertamente, mesmo em plena rua,
por entre a poeira levantada e os uivos de dor.
A língua pode ser desordeira,
mas o silêncio envenena a alma.
Quem quiser, que me censure ─ eu estou satisfeito.


edgar lee masters
spoon river
tradução josé miguel silva
Relógio d´água
2003
 

domingo, 8 de setembro de 2013

Elogio da simplicidade

Aprecio muito o trabalho de Duarte Belo, que apenas conhecia pelas obras associadas a Ruy Belo. Porém, foi um livro que nada tem a ver com este poeta que me assombrou estas férias. Escrevo "assombrou" depois de ter escrito, e eliminado, "apaixonou". Também poderia ter escrito "fascinou" ou, melhor ainda, "possuiu". O problema com este livro, que considero superlativo, é que estas palavras o traem. Como posso usar palavras que engrandecem, como "superlativo", para falar de um livro cuja qualidade resulta da ausência de empolamento?
 
 
 
Em pequena,  ouvia chamar à pastelaria Santa Clara de Vila do Conde "os velhinhos" (perdão, perdão). Lembro-me da cara do senhor, mas esqueci a de Olívia. Que pena tenho.
Recordo-me, como só as crianças conseguem recordar, da cal, do balcão, das latas, do cheiro. Em criança gostava sem me questionar. Hoje, gosto porque gosto e também porque representa tudo aquilo que este país parece querer obliterar, omitir, esquecer. Hoje, estabelecimentos deste tipo quase desapareceram, substituídos por projectos falsamente opulentos, com muita madeira, vidro, mármore, focos, tetos falsos. Há intervenções que respeitam a atmosfera humilde e provinciana das lojas e dos restaurantes (não falo do "mercado nostalgia", que é outra história), mas são poucas - e talvez pouco apreciadas.
Talvez fosse mais fácil falar de Olívia e Joaquim. Doces de Santa Clara em Vila do Conde dizendo o que o livro não é. Tendo receitas da pastelaria, não é um livro de cozinha. Tendo (óptimas) imagens da casa e do material usado por Olívia e Joaquim, não é um livro de fotografia. Tendo parte da história de Olívia e Joaquim, não é um memorial familiar. Tendo um texto que descreve pormenorizadamente a configuração dos espaços, não é um livro de arquitectura. Tendo um epílogo que evita escrupulosamente qualquer tentação literária, constituiu, para mim, um "achamento" literário.
 
Não sabia que Duarte Belo tinha um blogue. Agora, graças a este livro, sei que tem. Deixo-vos o endereço e as fotografias deste livro que nele figuram.
 
 
Lamento não ser capaz de transmitir a emoção, simultaneamente estética, literária e pessoal que Olívia e Joaquim me provocou. As marcas do uso nos utensílios e na casa, as rachas nas paredes, o casaco picado, as cobertas, as folhas no jardim: sinais, vestígios da vida tal como ela é (perdoem-me o lugar-comum). Begónias: lembro-me de um tempo em que as plantas de interior eram begónias e avencas.
Apenas entrevemos a vida, o trabalho e o pensamento de Olívia e Joaquim. Sabemos que Olívia, a avó de Duarte Belo, dizia "O trabalho quer amor". Mas, neste livro atípico, contra a corrente, um manifesto (que não o é) contra a atitude "photoshop" que extravasa as meras imagens, não há fotografias directas de Olívia e Joaquim. Talvez - talvez - seja deles o retrato de casamento que está pendurado numa das paredes.
 
 Eu, por mim, queria escrever "Emília e Sebastião" e "Eugénia e Cipriano".